quinta-feira, 31 de março de 2011

Gilles em Ímola (1982): a pior volta (e o começo do fim)


     “De agora em diante vai ser guerra. Guerra total!” – declarou um enfurecido Gilles Villeneuve no fim de semana do GP da Bélgica de 1982. Visivelmente alterado, o antes simpático canadense trocava farpas pela imprensa com seu companheiro de equipe Ferrari, Didier Pironi. O relacionamento cordial entre os dois pilotos havia ido por água a baixo na corrida anterior, em Ímola. Numa prova atípica, em que apenas 14 carros largaram devido a um boicote das equipes aliadas à FOCA (Federação dos Construtores da F-1), os dois carros vermelhos chegaram às últimas voltas prontos para conseguir uma importante dobradinha. A direção da equipe pediu aos pilotos que maneirassem e mantivessem suas posições, evitando possíveis problemas mecânicos que estragariam a festa. Villeneuve, que vinha na frente, obedeceu as ordens e levantou o pé, mas Pironi aproveitou a chance para ultrapassá-lo e conseguir sua primeira vitória pela Scuderia.

     Gilles cruzou a linha de chegada sem poder acreditar no que havia acontecido; sentiu-se traído por um cara que julgava ser seu amigo. Conhecido no circo como um verdadeiro diabo nas pistas, mas um sujeito bacana e leal fora delas, o baixinho de Quebec virou fera após a corrida. Protagonizou talvez o pódio mais tenso da história, fazendo um tremendo bico enquanto Pironi estourava sua champagne. Sua cara demonstrava um misto de desgosto e raiva que dava até medo.

     Ordens de equipe são sempre prejudiciais ao esporte; por que, então, a imprensa caiu de pau sobre Didier, que não tinha feito nada mais do que um piloto de verdade deveria ter feito?

     O problema era que o mundo esperava por um título de Gilles. Reconhecido como um gênio do automobilismo, o antigo campeão mundial de snowmobilles (trenós motorizados que competem em pistas cheias de saltos e perigos) enfim estava a bordo de um carro a altura de seu talento e tinha uma equipe disposta a trabalhar para fazê-lo levar o caneco. Reconhecidamente, nos anos anteriores Gilles havia carregado a equipe nas costas, superando os limites de um carro pesadão e fora de controle. O motor turbo era uma parada, mas o chassis era terrível e comprometia todo o conjunto. Mesmo assim, guiando o que chamou de “um velho cadillac vermelho”, Gilles conseguiu duas de suas maiores vitórias, em Mônaco e Jarama. Enquanto isso, Pironi não conseguiu ir ao pódio nem ao menos uma vez.

     Com a chegada do projetista Harvey Postlewaith, as expectativas para 82 eram grandes. Desde 1979 o time italiano não contava com um carro vencedor, um ano em que Gilles, como segundo piloto, obedeceu as ordens da equipe para fazer com que Jody Scheckter chegasse ao título. Tamanha obediência lhe valeu o respeito de Enzo Ferrari, já naquela época fã do seu estilo de guiar no fio da navalha. O velho comendador lhe prometeu ao final daquela temporada: “esse título era de Jody, o próximo será seu”. Gilles não sabia que teria que esperar tanto para pilotar novamente uma Ferrari campeã...

     1982 começou bastante embolado. O equilíbrio na disputa entre equipes e pilotos era tanto que você podia acordar num domingo podendo esperar vitória de uns seis ou sete pilotos. No entanto, o conjunto de Maranello dava demonstrações de estar alguns passos à frente da concorrência, o suficiente para fazer com que seus pilotos fossem considerados favoritos ao título. As equipes britânicas logo notaram que teriam que voltar para prancheta, buscando arrancar alguns décimos de segundo aqui e ali. A situação ficou clara quando tanto Williams quanto Brabham foram desclassificadas do GP do Brasil por utilizar uma estratégica caixa d’água em seus carros; durante a prova, uma torneirinha esvaziava o compartimento lentamente, liberando peso e permitindo que os pilotos voassem na pista. As equipes de fábrica, lideradas por Ferrari e Renault, não gostaram nem um pouco daquela estratégia e apelaram contra o resultado junto à FISA (então órgão responsável pela F-1 na Federação Internacional de Automobilismo), que lhes deu ganho de causa. Com isso, Nelson Piquet perdeu o caneco pela vitória na prova tupiniquim, e Keke Rosberg também viu os pontos de seu segundo lugar escapar pelos dedos.

     Aí a coisa esquentou de vez. As equipes dos “garageiros”, como eram chamadas as equipes particulares da época, decidiram jogar pesado contra a decisão e boicotaram o GP de San Marino. Fizeram uma verdadeira greve, recusando-se a colocar seus carros na pista. A situação esdrúxula reduziu o grid a míseros 14 carros, deixando apenas a dupla da Renault, Alain Prost e René Arnoux, como adversários para a Ferrari. Os tifosi pressentiram a festa e encheram as arquibancadas, pintando o autódromo de vermelho.

     Após a largada, os franceses pularam na frente, mas ficaram pelo caminho ainda no começo da prova. Com isso, Gilles foi para a ponta, seguido de perto por Pironi, mas mantendo uma liderança segura. Por voltas e mais voltas a corrida foi bastante monótona, parecendo que a vitória do canadense estava assegurada. Diante do excessivo consumo de combustível, o comando da Ferrari decidiu não arriscar a dobradinha quase garantida, mandando dos boxes há poucas voltas do final uma mensagem bastante sugestiva: SLOW (em inglês, “devagar”, ou seja, maneirem o ritmo).

     Como a mensagem valia para ambos os pilotos, subentendeu-se que os dois deveriam manter suas posições até o final e fazer a festa da galera italiana. O problema é que, quando Villeneuve cumpriu as ordens e levantou o pé, Didier Pironi o passou na maior cara dura. Gilles achou que o francesinho queria dar um show para a torcida, pegou seu vácuo e o ultrapassou de maneira ousada.

     Na última volta, Gilles novamente reduziu o ritmo e ZUPT! – Didier o passou novamente. O canadense bem que tentou retomar a ponta, mas não deu tempo. Veio a bandeirada e, com ela, aquele ponto de interrogação na cabeça de todo mundo que estava assistindo a prova; afinal, como Ville havia perdido uma corrida que parecia tão segura? Ainda mais para seu companheiro de equipe e depois das ordens que vieram dos boxes?


     “Pediram para que diminuíssemos o ritmo, ninguém falou que era proibido ultrapassar”, justificou-se Pironi, sem convencer. A cúpula da Ferrari apressou-se para defender seu primeiro piloto, emitindo um comunicado sem precedentes no qual criticava abertamente a conduta de Pironi. Mas a impressão que toda a equipe estava ao lado de Villeneuve não era tão verdade assim; logo, começou a rondar por Maranello a opinião de que o francês não merecia ser crucificado apenas por ter sido competitivo demais.

     Os dias que se seguiram vieram cheios de tensão. Em entrevista à revista Motorsport, Gilles chamou Didier de “traidor” e avisou que “daqui para frente será cada um por si!” Pironi fingiu não ligar para aquelas palavras, dando a entender que o canadense era apenas um mal perdedor. Diante de tanta encrenca, a prova seguinte, em Zolder, começou a ganhar ares de revanche.

     Visivelmente transtornado, Ville dava tudo nos treinos mas não conseguia bater os tempos de Pironi. Nos últimos minutos da qualificação de sábado, decidiu partir para o tudo ou nada. Pironi estava classificado em sexto e Villeneuve em sétimo.

     As voltas eram rápidas, mas não o suficiente para levar o canadense adiante no grid. Seu estilo agressivo estava detonando os pneus rapidamente, o que fez a Ferrari chamá-lo de volta aos boxes. Mesmo assim, Gilles vinha desembestado quando encontrou a March de Jochen Mass lentamente encaminhado-se ao pit; num milésimo de segundo, decidiu ultrapassar o alemão pela direita, justo a direção que este escolheu para abrir-lhe caminho. Houve contato entre os carros e a Ferrari foi catapultada para os céus, caindo de bico e capotando diversas vezes depois. Os médicos agiram rápido, levando o astro canadense de helicóptero para o hospital mais próximo, mas infelizmente nada pôde ser feito. Antes mesmo de confirmado o óbito, a equipe Ferrari já havia empacotado suas coisas e abandonado o GP.



     O choque do público foi grande e imediato. Como aconteceria doze anos depois, quando Ayrton Senna contornaria a Tamburello pela última vez, o melhor piloto da categoria mundo havia morrido nas pistas. As cenas do terrível desastre encheram os noticiários, e o circo F-1 comoveu-se com a morte do baixinho endiabrado. Gente que não nutria a maior das paixões por Villeneuve, como René Arnoux, não tardou a afirmar o tamanho daquela perda para o automobilismo: “após a morte de Gilles, a disputa ficou igual para todos; não há dúvidas de que ele era o melhor”.

     Na busca por um culpado, a opinião pública desceu o pau sobre Didier Pironi, acusando-o pelo abalo psicológico que teria levado o canadense a ultrapassar os limites. A Ferrari decidiu apoiar o francês naquele momento difícil, declarando-o como novo primeiro piloto da equipe, o que o levou a dar tudo de si nas provas seguintes. O cara passou a ser a maior barbada para o título de pilotos, correndo de forma surpreendente. Em Zandvort, Didier fez a melhor prova de sua vida, não dando chances para os adversários em nenhum momento da prova. Com o troféu na mão, dedicou aquela importante vitória a Gilles: “essa vai para meu amigo Villeneuve”, falou com a boca cheia, mas a imprensa o acusou de fazer jogo de cena.

     A seqüência de bons resultados o havia colocado em primeiro lugar no campeonato, com mais de 20 pontos de vantagem sobre o segundo, quando a F-1 chegou à Hockenheim. Naquelas retas infindáveis, o motorzão V-12 da Ferrari o mandou para o topo da tabela de tempos nos treinos classificatórios. No sábado, com o pancadão de chuva que caiu na pista alemã, Didier foi para a pista apenas para testar os pneus biscoito. Numa volta lançada, em plena floresta negra, viu o spray de um carro mais lento e decidiu ultrapassá-lo, quando foi surpreendido pela visão de uma Renault que fazia a mesma manobra. Lembrando demais o acidente de Gilles, a Ferrari levantou vôo após a batida e se espatifou no chão de forma terrível. Didier foi arremeçado para longe dos destroços, mas graças a Deus os carros que vinham atrás conseguiram desviar. Um deles foi o de Nelson Piquet, que abandonou sua Brabham no acostamento para ir ajudar o francês, mas ficou paralisado após retirar o seu capacete cheio de sangue. 


     A Renault envolvida na batida era a pilotada por Alain Prost. Então ainda um garoto que já demonstrava o talento que o levaria a 4 títulos mundiais, Alain ficou tão chocado com o acidente que nunca mais conseguiu acelerar tudo em provas sob chuva. “Toda vez que corro em pistas molhadas, olho no espelho retrovisor e vejo a Ferrari de Didier voando”, revelou anos depois, justificando sua péssima performance nessas condições. 


      Pironi sobreviveu ao impacto mas sofreu terríveis lesões nas pernas, levando sua carreira na Fórmula 1 a um prematuro fim. Mesmo não podendo mais competir, ao final do ano ele sagrou-se vice-campeão do mundo, numa temporada em que a Ferrari levou o título de construtores.

     O acidente de Gilles e aquele que lhe roubou o título passaram a assombrar o francês. Nos anos que se seguiram, ele passou por inúmeras cirurgias e cessões de fisioterapia, num esforço sem fim para “voltar à F-1 e recuperar o título que deveria ter sido meu em 1982”, como anunciou à imprensa. Em 1986, Didier conseguiu alguns testes em equipes da categoria, mas no final não conseguiu um contrato para 1987.

     A paixão pela velocidade – e uma vontade louca de provar todo seu talento para o mundo e para si mesmo – levou Pironi ao mundial de Powerboats, divisão de elite da motonáutica. Tristemente, ele perdeu sua vida após sua lancha se chocar a toda velocidade com uma onda.


     Didier Pironi deixou sua esposa, Johann, grávida de gêmeos. Quando as crianças nasceram, ela deu-lhes os nomes que o pai havia escolhido: Didier Jr. e ... Gilles.

Por: Olavo Bittencourt Neto

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